segunda-feira, 28 de junho de 2010

Flávio José, Sem Tareco e Mariola

Cariri paraibano, terra de povo forte, resistente, herdeiro de antigas nações que aprenderam após milênios a conviver com a terra, com os astros, com as estações, com as águas, com os animais, com as plantas. Também somos descendentes de pessoas vindas do além mar que sentaram seus pés por aqui há alguns séculos e têm feito deste torrão, ora árido, ora com toda vivacidade possível, o local de tornar eternos seus sonhos, suas festas, suas tradições, suas religiosidades. O Cariri paraibano é Terra da cerâmica, da rede, da renda renascença, do fuxico, da cocha de retalho, da escultura em madeira, do crochê, do tenerife, da boneca de bucha, dos brinquedos e brincadeiras populares. É também Terra de Gente Boa, Zabé da Loca, Sandra Belê, de Mazurca, de Coco de Roda, de Banda de Pífano, de Cambindas, de Fuba de Taperoá, João Durão, Josias de Serra Branca, Ilmar Cavalcante, de Pastoril, de Reisado, Zé da Requinta de SS do Umbuzeiro, Ilmar Cavalcante, Laudivan de Freitas, de Pinto de Monteiro. Enfim, de pessoas e grupos que conseguiram entender que após muito lutar o passado deve ser o mapa por onde devemos nos guiar para tornar o mundo atual mais justo. Agora falando do cantor Flávio José, que ao que parece não entendeu a profundidade deste Cariri que acabei de apresentar. Parece que ele ainda está num tempo em que as relações entre seres humanos devam ocorrer a partir de ações sisudas, desconfiadas, arrogantes, servis. Ainda este ano vi este cantor homenageando a pifeira, agricultora, mãe e mulher Zabé da Loca. Ao ver a cena perguntei pra mim mesmo: quantas vezes Zabé foi convidada para sentar nos sofás da casa deste cantor para trocar idéias musicais, experiências de vida? Em que momento este cantor foi visitar a Loca de Zabé para saber um pouco de sua história de luta, e tirar desta mesma história “a senha”, “a licença” para poder homenageá-la?. Falo de Flávio José por ele ser considerado pela crítica de música nordestina e por um público crescido, um representante grandioso da cultura paraibana, nordestina, brasileira. Era esse cantor que eu esperava ver em meio aos artistas de sua terra fazendo “a coisa acontecer”, e não pegando “carona” num evento de homenagens a artistas conterrâneos. Porque não basta cantar a nossa culinária, com “Tareco e Mariola”, ou mesmo voltar aos “Tempos de Criança” para poder receber o título, ou melhor, o respeito de Cidadão da Cultura ou mesmo de representante da tradição musical nordestina. Tem que ser mais profundo. É preciso ter saudades dos tempos idos, do cheiro da jurema floreando, da Tanajura frita com farinha, dos moinhos de pedra e dos banhos nos rios temporários que cortam esta terra maravilhosa quando o ano é chuvoso. E tirar desta mesma saudade a fonte de inspiração necessária a seduzir novas e velhas pessoas para que venham partilhar de um convívio harmonioso com tudo que faz do nosso Cariri ser o que ele é hoje. Acredito que o Sr. Flávio José, que de Zé pouco tem, pois Zé lembra força, esperança e sonho de um povo paraibano que há séculos luta por mais dignidade, tenha que rever suas práticas sociais junto aos fazedores de cultura de nossa região. Falando em Zé, lembro também a música “Vixe como Tem Zé”, cantada por Jackson do Pandeiro, que também era Zé e se apresentou nos Cabarés, Bares, Ruas e Orquestras, ajudando a colocar a música popular nordestina num lugar de destaque nacional, trazendo na atualidade uma infinidade de seguidores que continuam a recriar esta música. Ao ver Flávio José cantando na pequena cidade de Zabelê, me dei de cara com um ser Frio, Congelado mesmo, que possui membros desconectados com o restante do corpo. As mãos friccionam nos teclados e nos baixos da sanfona acordes e melodias que arrebatam a alma, mas o corpo e a face são texturas fúnebres que só passam tristezas e revoltas. Os músicos que o acompanham, não só o acompanham na questão sonora de altíssima qualidade, mas também na performática de baixíssimo gosto: corpos sem almas em cima do palco. Poderíamos chamar de músicos zumbis. Diferente dos irmãos Inácio e João de Coquim, que no mesmo momento em que o cantor se apresentava no palco grande do evento, os mesmos eram exibidos no telão ao lado deste palco tocando suas gaitas, e que para mim e muitos colegas, transmitiam muito mais vivacidade com a arte que executavam, do que a “atração principal” da noite. É bom lembrar também que a equipe de filmagem foi proibida pelo cantor de registrar sua imagem e consequentemente não transpuseram a apresentação para o telão ao lado do palco. Penso mesmo é que o cantor e sua produção pouco conhecem a força que a imagem tem em dias atuais, estão mesmo desconectados com o mundo. E digo mais: não apenas o mundo atual cheio de imagens, simplesmente o MUNDO MESMO, pois o homem do tempo das cavernas utilizou de imagens para exercer algum tipo de comunicação da época. No “show” ainda faltou cenário e luz no palco deste artista que há muito canta as composições dos poetas e músicos que eternizam a nossa Região. Em fim, falta iluminação na vida de Flávio José para que ele entenda que as centenas de reuniões ocorridas no Território dos Povos do Cariri são para que este povo continue sendo diferenciado de outras culturas do mundo e possa assim trazer maior sustentação econômica e social para o futuro que aqui já chegou e que virá. Participei de muitas reuniões, nunca o vi em nenhuma, com exceção de uma ocorrida em Monteiro que tratava da vinda de parte do Rio São Francisco para outros cantos do Nordeste. Talvez esta única vez de sua presença por aqui num processo de gestão pública tenha sido pelo fato de ele poder ser a luz que mais brilhasse naquele dia. Não entende o cantor que para uma sociedade dar certo é preciso que luzes brilhem, se apaguem e voltem a brilhar novamente e assim todas possam brilhar e serem vistas por todos. E para encerrar o “show”, em Zabelê, o Sr. Flávio deu “o tiro de misericórdia”, puxou da sua escrivaninha a incompatibilidade de gêneros, digo gêneros musicais: cantou, junto a uma cantora com timbre de “Forró” cearense (estilo o qual vive sendo rebatido e enfrentado por este mesmo cantor), uma música do cancioneiro religioso cristão, e conseguiu em minutos acabar de enterrar toda a diversidade de credos, crenças e não crenças presentes nos seus antigos repertórios, outrora desconectados as honrarias de um mercado musical decadente que agora ele se ajoelha e pede bênção.

EU QUERO O MEU SERTÃO DE VOLTA!


Nos últimos dez anos tenho viajado freqüentemente pelo sertão de Pernambuco, e assistido, não sem revolta, a um processo cruel de desconstrução da cultura sertaneja com a conivência da maioria das prefeituras e rádios do interior. Em todos os espaços de convivência, praças, bares, e na quase maioria dos shows, o que se escuta é música de péssima qualidade que, não raro, desqualifica e coisifica a mulher e embrutece o homem.

O que adianta as campanhas bem intencionadas do governo federal contra o alcoolismo e a prostituição infantil, quando a população canta “beber, cair e levantar”, ou “dinheiro na mão e calcinha no chão” ? O que adianta o governo estadual criar novas delegacias da mulher se elas próprias também cantam e rebolam ao som de letras que incitam à violência sexual? O que dizer de homens que se divertem cantando “vou soltar uma bomba no cabaré e vai ser pedaço de puta pra todo lado” ? Será que são esses trogloditas que chegam em casa, depois de beber, cair e levantar, e surram suas mulheres e abusam de suas filhas e enteadas? Por onde andam as mulheres que fizeram o movimento feminista, tão atuante nos anos 70 e 80, que não reagem contra essa onda musical grosseira e violenta? Se fazem alguma coisa, tem sido de forma muito discreta, pois leio os três jornais de maior circulação no estado todos os dias, e nada encontro que questione tamanha barbárie. E boa parte dos meios de comunicação são coniventes, pois existe muito dinheiro e interesses envolvidos na disseminação dessas músicas de baixa qualidade.

E não pensem que essa avalanche de mediocridade atinge apenas os menos favorecidos da base de nossa pirâmide social, e com menor grau de instrução escolar. Cansei de ver (e ouvir) jovens que estacionam onde bem entendem, escancaram a mala de seus carros exibindo, como pavões emplumados, seus moderníssimos equipamentos de som e vídeo na execução exageradamente alta dos cds e dvds dessas bandas que se dizem de forró eletrônico. O que fazem os promotores de justiça, juízes, delegados que não coíbem, dentro de suas áreas de atuação, esses abusos?

Quando Luiz Gonzaga e seus grandes parceiros, Humberto Teixeira e Zé Dantas criaram o forró, não imaginavam que depois de suas mortes essas bandas que hoje se multiplicam pelo Brasil praticassem um estelionato poético ao usarem o nome forró para a música que fazem. O que esses conjuntos musicais praticam não é forro! O forró é inspirado na matriz poética do sertanejo; eles se inspiram numa matriz sexual chula! O forró é uma dança alegre e sensual; eles exibem uma coreografia explicitamente sexual! O forró é um gênero musical que agrega vários ritmos como o xote, o baião, o xaxado; eles criaram uma única pancada musical que, em absoluto, não corresponde aos ritmos do forró! E se apresentam como bandas de “forró eletrônico”! Na verdade, Elba Ramalho e o próprio Gonzaga já faziam o verdadeiro forró eletrônico, de qualidade, nos anos 80.

Em contrapartida, o movimento do forró pé-de-serra deixa a desejar na produção de um forró de qualidade. Na maioria das vezes as letras são pouco criativas; tornaram-se reféns de uma mesma temática! Os arranjos executados são parecidos! Pouco se pesquisa no valioso e grande arquivo gonzaguiano. A qualidade técnica e visual da maioria dos cds e dvds também deixa a desejar, e falta uma produção mais cuidadosa para as apresentações em geral.

Da dança da garrafa de Carla Perez até os dias de hoje formou-se uma geração que se acostumou com o lixo musical! Não, meus amigos: não é conservadorismo, nem saudosismo! Mas não é possível o novo sem os alicerces do velho! Que o digam Chico Science e o Cordel do Fogo Encantado que, inspirados nas nossas matrizes musicais, criaram um novo som para o mundo! Não é possível qualidade de vida plena com mediocridade cultural, intolerância, incitamento à violência sexual e ao alcoolismo!

Mas, felizmente, há exemplos que podem ser seguidos. A Prefeitura do Recife tem conseguindo realizar um São João e outras festas de nosso calendário cultural com uma boa curadoria musical e retorno excelente de público. A Fundarpe tem demonstrado a mesma boa vontade ao priorizar projetos de qualidade e relevância cultural.

Escrevendo essas linhas, recordo minha infância em Serra Talhada, ouvindo o maestro Moacir Santos e meu querido tio Edésio em seus encontros musicais, cada um com o seu sax, em verdadeiros diálogos poéticos! Hoje são estrelas no céu do Pajeú das Flores! Eu quero o meu sertão de volta!

Anselmo Alves

j.anselmoalves@hotmail.com